Não tenha ídolos
ProgramaçãoUma reflexão sobre a última polêmica envolvendo o DHH e seu posicionamento político. O dia em que sua lealdade a uma pessoa se sobrepõe à sua busca pela melhor solução técnica é o dia em que você deixa de ser um engenheiro e se torna um fã.
Eu tenho uma regra simples que me guiou por mais de vinte anos nesta indústria maluca de software: eu não tenho ídolos. Nenhum. Zero. A ideia de colocar um ser humano num pedestal, de transformar um programador, um CEO ou um "visionário" em uma figura infalível é, na minha humilde opinião, uma das coisas mais perigosas e infantis que podemos fazer. É uma armadilha que a nossa própria natureza, essa necessidade tribal de seguir um líder, prepara para nós. E nós, como engenheiros que deveriam prezar pela lógica e pelo ceticismo, caímos nela com uma frequência assustadora.
O máximo que eu me permito é admirar o trabalho de alguém. Eu posso olhar para um pedaço de código, um framework, um livro, uma filosofia de gestão e pensar: "Uau, isso é brilhante. Há uma lição valiosa aqui." Eu posso absorver o conhecimento, aplicar a técnica, debater a ideia. Mas a pessoa? A pessoa é só isso: uma pessoa. Um amontoado complexo e contraditório de qualidades, defeitos, vieses, crenças e, sim, opiniões políticas. E, mais cedo ou mais tarde, essa pessoa vai te decepcionar. É inevitável.
Nesta semana, a nossa bolha tecnológica nos deu um exemplo simplesmente perfeito disso. Um estudo de caso em tempo real sobre a fragilidade dos pedestais que construímos. Estou falando de David Heinemeier Hansson, o DHH.
A group of Lefist Activists are pushing for the Ruby on Rails project to remove the project’s founder (@dhh) because they claim he “holds racist and transphobic views” and “other traits undesirable”.
— The Lunduke Journal (@LundukeJournal) September 24, 2025
This group, which compares themselves to the French resistance during WWII, is… pic.twitter.com/51BktKgh2q
Se você leu um dos últimos artigo aqui no blog, sabe que eu citei o DHH. Recomendei a leitura dos seus livros e a análise das suas ideias sobre simplicidade, pragmatismo e o combate à complexidade acidental. E eu mantenho cada palavra. O trabalho dele influenciou a forma como milhões de desenvolvedores constroem software para a web. Mas o que aconteceu recentemente no Twitter foi um lembrete gritante de que o criador de uma ferramenta e a ferramenta em si são duas entidades completamente distintas.
Para quem não acompanhou o drama: foi revelado que a 37signals, empresa de DHH, estava patrocinando um evento de uma organização com pautas e palestrantes de direita e extrema-direita. A reação da comunidade foi imediata e polarizada. De um lado, uma avalanche de críticas, acusações e um sentimento de traição por parte de muitos que o admiravam. Do outro, uma defesa ferrenha da "liberdade de expressão" e acusações de "cultura do cancelamento".
O próprio DHH, em vez de recuar, dobrou a aposta, defendendo sua decisão. Não vou entrar no mérito de quem está certo ou errado na discussão política. Francamente, para o ponto que quero defender aqui, isso é irrelevante. O que me interessa é o fenômeno em si: o choque, a surpresa, a dor de ver o "herói" se revelar... humano. Com uma visão de mundo que, para muitos, é completamente antagônica à sua.
This dumb letter, that was never going to go anywhere, hasn't even gathered 50 signatories 😂. Who in the right mind would also sign such an obvious "don't hire me, ever" self-declaration? https://t.co/0XURsBxNh8
— DHH (@dhh) September 25, 2025
Este episódio escancara uma verdade que muitos na tecnologia tentam ignorar: tudo é político. A decisão de onde você investe seu dinheiro é política. A escolha de quais eventos você patrocina é política. A cultura que você cria na sua empresa é política. Ignorar isso é um luxo que não temos. Eu sou uma pessoa extremamente politizada, e meus valores estão, na maior parte do tempo, no extremo oposto do espectro do DHH. Ele é um fã declarado do Elon Musk, um defensor de certas políticas de direita que eu abomino. Nossas visões de mundo são, em grande parte, irreconciliáveis.
E sabe o que isso muda na minha avaliação sobre a importância do Ruby on Rails por exemplo? Absolutamente nada.
Separando o Código da Crença
Negar a contribuição de DHH para o mundo do software por causa de suas afiliações políticas é um ato de desonestidade intelectual. É como tentar apagar os Beatles da história da música porque você não gosta das opiniões pessoais de John Lennon. É jogar fora o bebê junto com a água do banho. É uma reação infantil que nos impede de aprender com fontes imperfeitas – e todas as fontes são imperfeitas.
Vamos ser honestos e listar o que esse homem e sua equipe construíram e compartilharam com o mundo. Não é pouca coisa.
- Ruby on Rails: Vamos começar pelo óbvio. Rails não foi apenas um framework; foi uma revolução. No início dos anos 2000, desenvolver para a web era um exercício de masoquismo. PHP, Java com seus XMLs intermináveis, ASP... era tudo um pântano de complexidade. Rails chegou com conceitos como Convention over Configuration e Don't Repeat Yourself (DRY), e mostrou que era possível construir aplicações robustas de forma rápida e elegante. Ele priorizou a felicidade do desenvolvedor. Ferramentas como Active Record, o sistema de roteamento, as migrations; tudo isso estabeleceu padrões que foram copiados, com ou sem crédito, por praticamente todos os frameworks que vieram depois, em todas as linguagens. Shopify, GitHub, Airbnb, Twitch, Kickstarter. Gigantes da internet foram construídos sobre esse alicerce.
- A Filosofia 37signals (Basecamp): Muito antes de "startup enxuta" virar um clichê, DHH e seu sócio, Jason Fried, já pregavam o bom senso. Os livros Rework, Remote e It Doesn't Have to Be Crazy at Work são manifestos contra a cultura do hustle, das longas jornadas de trabalho, das reuniões inúteis e do crescimento a qualquer custo. Eles defenderam o trabalho remoto quando era considerado uma excentricidade. Defenderam a lucratividade em vez da busca cega por investimento de risco. Eles nos ensinaram a dizer "não", a focar no essencial, a construir produtos que as pessoas realmente usam.
- Open Source Contínuo: A contribuição não parou em Rails. A 37signals continuou a extrair e abrir o código de suas ferramentas internas. Hotwire, por exemplo, é uma abordagem brilhante para construir aplicações web modernas e reativas sem a complexidade de frameworks JavaScript pesados no front-end. Kamal simplifica o deploy de aplicações usando containers, oferecendo uma alternativa de código aberto a plataformas como Heroku. Trix, o editor de rich text que usam no Basecamp, é outro presente para a comunidade. Eles não precisavam fazer nada disso. Poderiam ter mantido tudo proprietário. Mas eles compartilharam.
- Omarchy: E quando ele não está revolucionando o desenvolvimento web, ele está tentando reinventar o ambiente onde esse desenvolvimento acontece. Insatisfeito com o macOS e o Windows, DHH mergulhou de cabeça no mundo Linux e criou o Omarchy. Não é apenas mais uma "distro". O Omarchy é uma distribuição Linux agressivamente opinativa, baseada em Arch e Hyprland, projetada do zero para desenvolvedores que valorizam a velocidade e a eficiência de um ambiente focado no teclado. Ele já vem com um conjunto completo de ferramentas (como Neovim, Docker e dezenas de utilitários de linha de comando) prontas para usar, eliminando horas de configuração. É a filosofia de "convenção sobre configuração" do Rails aplicada a um sistema operacional inteiro. Mais uma vez, você pode amar ou odiar a abordagem, mas é impossível negar que é um ato de criação ousado e outra contribuição de código aberto que força uma discussão sobre como nós, desenvolvedores, trabalhamos.
- Uma Voz Crítica (ainda que controversa): DHH nunca teve medo de ser a voz dissonante. Ele criticou a complexidade excessiva no mundo do front-end (o "JavaScript fatigue"). Ele bateu de frente com a Apple por causa das taxas da App Store. Ele liderou a saída da 37signals da nuvem, mostrando que era possível economizar milhões rodando em hardware próprio, desafiando o dogma de que "tudo precisa estar na AWS". Você pode não concordar com os alvos dele ou com a forma como ele se expressa, mas é inegável que ele força a indústria a questionar suas próprias vacas sagradas.
Olhar para essa lista e dizer "não importa, ele tem visões políticas ruins" é um desserviço a si mesmo. É privar-se de um corpo de conhecimento gigantesco e valioso porque o mensageiro não se encaixa no seu molde ideológico.
A doença do Ídolo e a geração do "Like"
O problema, na verdade, não é o DHH. O problema somos nós. É essa cultura, especialmente forte na tecnologia, de criar semideuses. Nós não apenas usamos o framework de alguém; nós vestimos a camiseta, colocamos o adesivo no notebook, entramos no fã-clube e defendemos o "nosso cara" como se fosse um time de futebol.
Vemos isso em todos os lugares. Os devotos da Apple que tratavam Steve Jobs como um profeta. Os seguidores de Elon Musk que defendem cada tweet impulsivo como se fosse um lance de gênio estratégico. Os puristas do software livre que canonizam Richard Stallman. É um padrão que se repete. Nós ansiamos por heróis, por figuras que nos deem um norte, um conjunto de regras a seguir, uma identidade.
E isso é uma receita para o desastre, por dois motivos principais:
Primeiro, isso atrofia o pensamento crítico. Quando você idolatra alguém, você para de questionar. A opinião do ídolo vira um atalho para a sua própria. Se "Fulano" disse que micro-serviços são o futuro, então deve ser. Se "Ciclano" disse que testes unitários são perda de tempo, então ele deve saber o que está falando. Isso é o oposto do que um bom engenheiro deve fazer. Nosso trabalho é analisar, pesar os prós e contras, entender o contexto e tomar decisões informadas, não seguir dogmas.
Segundo, isso cria uma indústria frágil e tribal. A tecnologia se transforma em um campo de batalha de personalidades, não de ideias. As discussões deixam de ser sobre a melhor abordagem técnica e passam a ser sobre qual "tribo" está certa. A lealdade à figura pública se torna mais importante do que a busca pela verdade técnica.
Essa dinâmica é especialmente perigosa para os jovens que estão entrando na área. Eles chegam em um mundo de influenciadores de tecnologia, de "gurus" do LinkedIn e do Twitter, e são ensinados, implicitamente, que o caminho para o sucesso é escolher um lado, um ídolo para seguir. É uma mentira. O caminho para o sucesso é aprender a pensar com a própria cabeça.
Foque no artefato, ignore o artista
Então, o que fazer? A solução é ridiculamente simples, mas exige disciplina. Abstraia a pessoa. Foque no conteúdo, no trabalho, no artefato.
Aprenda com Ruby on Rails. Estude seu código-fonte, entenda a sua arquitetura, leia os debates por trás das suas decisões de design. Mas não perca seu tempo defendendo ou atacando o DHH no Twitter. A sua carreira não vai avançar um centímetro com isso.
Leia Rework. Absorva as ideias sobre gestão de produtos e cultura de trabalho. Aplique o que faz sentido para a sua realidade, descarte o que não faz. Mas você não precisa concordar com a visão política de seus autores para extrair valor do livro.
Assista a uma palestra do Martin Fowler. Aprenda sobre refatoração e arquitetura de software. Mas você não precisa saber em quem ele vota.
O conhecimento técnico é uma ferramenta. Uma vez que uma ideia ou um código é publicado, ele ganha vida própria. Ele deixa de pertencer ao seu criador e passa a pertencer a quem o utiliza, o adapta, o melhora. O legado de Rails não é mais do DHH; é das centenas de milhares de aplicações que ele possibilitou, das carreiras que ele lançou, dos problemas que ele resolveu.
A sua responsabilidade, como profissional, é garimpar o ouro onde quer que ele esteja. Às vezes, você vai encontrar ouro na mina de alguém de quem você discorda profundamente. Pegue o ouro e vá embora. Não se sinta na obrigação de gostar do mineiro.
Deixe a idolatria para os adolescentes e as estrelas do pop. Nós somos engenheiros. Nós construímos coisas. E para construir coisas fantásticas, precisamos das melhores ferramentas e das melhores ideias, não importa de onde elas venham. O dia em que sua lealdade a uma pessoa se sobrepõe à sua busca pela melhor solução técnica é o dia em que você deixa de ser um engenheiro e se torna um fã. E o mundo já tem fãs demais.
Comments